segunda-feira, 12 de julho de 2010

#Dia 12 - Um Conto

Eu poderia colocar qualquer um dos vários contos que já li e achei espetaculares, mas no entanto vou ceder esse espaço a mim mesmo, e escrever o conto baseado em um sonho que tive há 7 anos. Se tiverem paciência – e estômago – pra ler, deixem seus comentários.

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Comedores de Carne

Olá menino, que bom que você veio. É raro alguém aparecer aqui para conversar comigo, dizem que eu estou velho e louco. Menos o pessoal lá da igreja. Esses vem me visitar sempre, jogar conversa fora, me levar pra passear, dançar e me divertir. Mas mesmo eles não acreditam nas coisas que eu falo. Eles dizem que tudo isso não passa de estórias de um antigo policial, coisas que eu escutei nas noites de vigília...

Mas você não, você está interessado no que eu tenho a contar.

Primeiro, me passa o jornal. Tem uma matéria sobre macacos e gorilas... Eu gosto desse tipo de animal... Parece gente sabe...

Eu não compreendo esse seu gosto por assuntos grotescos como esse que eu vou te falar. E também não me importa. Cada um de nós tem seus segredos, suas sinas e seus gostos, e não é um aposentado esquecido que vai discutir isso.

Começar? Ah sim... Vamos ao acontecido... Segure meu jornal, sim?

Era começo dos anos oitenta... ou final dos setenta, algo assim. Só sei que era aquela época em que a ditadura não era tão dura. Já tinha perdido força durante todos aqueles anos tortuosos. Mesmo o meu trabalho, que era de policial, já não era tanto quanto antigamente, e isso até me deixava mais feliz. Não era do meu feitio sair batendo em pessoas inocentes apenas porque os manda-chuvas achavam que elas podiam representar alguma ameaça. Posso garantir que durante o tempo em que fui delegado que na minha jurisdição ninguém era espancado ou enforcado. Infelizmente eu descobri que coisas ainda piores aconteceram...

Meu distrito era bem ao sul da cidade. Zona barra pesada, mas nada comparado aos dias de hoje. Era lugar de favelado. Casas e barracos feitos de tijolo, cimento e lona. Alguns só de madeira ou papelão. Muita gente boa e trabalhadora viveu e morreu lá. Mas como todo lugar, também tinha aqueles que criavam problemas, que eram a nossa preocupação. E não eram apenas ladrões de galinha que tinha por lá não... O perigo já era o tráfico. Por algum motivo os traficantes decidiram que aquele local seria um ótimo ponto pra distribuir pro resto da cidade. E foi ai que começou o trabalho de uns e a vida mansa de outros. Sim, digo isso porque conheci várias pessoas que logo se renderam as facilidades que o dinheiro sujo traz. Eu perco a conta de quantos cabos, soldados e sargentos se perderam nesse caminho. Se eu quizesse eu também tinha ficado rico, e talvez hoje não estivesse esquecido aqui nesse asilo. Mas acho que foi até melhor, pois eu fiquei sabendo de outro amigo delegado que aceitou a propina, e até ficou rico, mas o dinheiro não adiantou pra ele, já que ele logo foi para sete palmos pra baixo da terra...

Opa, desculpe... Não vou desviar da história de novo...

Bem, era mês de novembro, se não estou enganado. Perto do feriado da república. Era pra ser mais um fim de semana comum. O movimento da favela estava muito tranquilo. Tranquilo até de mais. Mesmo tendo um pressentimento ruim, não destaquei mais homens do que o necessário para ficar na ronda e fazer plantão no distrito. Mas naquele dia alguns dos meus subordinados estavam fazendo um treinamento em alguma outra cidade. No fim das contas, estavamos na delegacia o escrivente, um cabo, eu e o um rapaz que trabalhava no Instituto Médico Legal. Ele estava lá para averiguar algumas fichas sobre uns homicídios... Algo nesse sentido. O rabecão estava parado lá fora, assim como a viatura e meu carro particular.

A noite foi prosseguindo, quando ouvimos o pipocar de balas não muito longe da delegacia. O sinal de rádio foi passado pra quem estivesse próximo. E logo o pedido foi atendido, e também retornado: "-Dois corpos na esquina da praça, perseguindo suspeitos, desligo!". É, parece que dois desafortunados já tinham se despedido desse mundo, e talvez outros estivessem seguindo o mesmo caminho. Roguei a Deus que nenhum deles fossem da minha jurisdição.

Infelizmente quando eu e os rapazes chegamos, vimos que um dos corpos era de um policial que a pouco tempo tinha sido mandado pra cá... Pobre rapaz, era bem forte e esperto. Essa não era a vida pra ele, mas ele gostava, dizia que combater o crime estava no sangue da família. E agora o sangue da família estava espalhado no chão, se mesclando ao sangue do delinquente que estava perto, que provavelmente deve tê-lo matado. Triste, mas nada mais podia ser feito, a não ser levar aqueles corpos dali. Ligo de volta pra delegacia e falo pro rapaz do IML que tem trabalho a ser feito. Ele responde que vai chamar um ajudante e logo estaria lá.

Uma meia hora depois chega o rabecão. Descem os dois indivíduos, usando grandes luvas pretas e trazendo sacos plasticos para os corpos. Naquele momento é que fui reparar no rapaz do IML... Estremamente magro, daqueles que você acha que se bater o vento, derruba, mas ainda sim demostrava uma força consideravel. Parecia ser quieto e reservado, falava apenas o necessário. Tinha a voz grossa, a pele clara, o cabelo preto e curto, os olhos fundos... Olhos que transimitam uma sensação que aquele homem era muito experiente, apesar de parecer jovem. Já o ajudante era diferente. Era mais energético, olhava tudo em volta com aqueles grandes olhos azuis. Aparentava ser mais velho que o outro rapaz, mas agia afoitamente. Diferente do seu amigo, este tinha uma aparência mais saudável e era mais falador.

Quando eles terminam de recolher os corpos, começa a chover. Nada de mais, era época de chuva mesmo. Só não esperavamos que essa fosse tão forte a ponto de fazer um barranco cair e bloquear a via que levava direto ao centro. Pra mim isso não era problema nenhum, mas para o pessoal do IML... Uma vez que a tempestade parecia não dar trégua, foram todos de volta para a delegacia. Ao chegarmos lá, descobrimos que o escrivente já havia ido embora, e que o outro cabo, por algum motivo, não estava lá. Mas não havia muito o que fazer, sendo que apenas fui para minha sala esperar se algum sinal de rádio aparecesse.

Neste instante, o ajudante vem a mim e pergunta se existia algum aparelho de vídeo na delegacia. Respondi afirmativamente, já que o escrivente era video-amador e gostava de ver suas próprias fitas. Antes de ir embora, o ajudante ainda puxou um pouco de conversa. Disse que não conhecia ainda direito a região, mas estava muito feliz com o que tinha. Sujeito doido, pensei comigo mesmo. Não pude deixar de reparar que aqueles olhos grandes vasculhavam minha sala com uma insistência pertubadora. Foi quando o relógio tocou. Eram duas da manhã. Eu dei uma desculpa aleatória e falei pro ajudante que ia precisar ficar sozinho, enquanto esperava algum dos meus subordinados voltarem. Ele concordou com a cabeça e pediu para que ele e seu amigo ficassem ali esperando a chuva passar. Com o meu consentimento, eles foram pro fundo da delegacia.

Depois que ele saiu, eu me recostei na minha cadeira e comecei a olhar a chuva... A luz apagada... Aquele marasmo... Aquele barulho repetitivo da chuva... Tudo aquilo me fez sentir um sono repentino, e mal pude conter as pescadas... Não sei quanto tempo gastei nisso, e talvez tivesse sido bom pra minha sanidade ter ficado dormindo lá.

Mas o fato é que me levantei para ir a cozinha, quando vi um brilho no vidro da janela, e comecei a escutar algo que mudaria minha visão do mundo...

A sala do escrivente era um pouco longe da minha. Se alguem conversasse em voz baixa, possivelmente quem estivesse ali onde eu estava não escutaria. E era assim, baixinho, que os dois conversavam enquanto assistiam a uma fita de video. Nada de mais, não fosse o conteúdo da fita, e da conversa...

O brilho azul da televisão mostrava pessoas e mais pessoas... Mortas... Corpos cortados de diferentes maneiras... Nomes e imagens gravadas em carne... Sangue decorando a cena... Naquele instante senti todo meu jantar voltando goela acima. Mas eu tinha que me segurar, eu tinha que saber porque os dois tinham interesse em coisas tão bizarras.

Foi quando ouvi o ajudante falando:

"-Comida, mestre!"

Uma vertigem me atingiu a cabeça. Me apoiei na parece ao lado, juntando forças para não fazer nenhum barulho. Me concentrei para tentar continuar escutando a conversa.

Os dois conversavam em um tom quase inaudivel. O ajudante tratava com imenso respeito o seu "mestre", enquanto este examinava a fita e dava alguns detalhes de anatomia humana... Mas precisamente, uma anatomia gastronômica, se é que isso existe. Dicas de onde cortar, o que comer primeiro... Também comentavam que a quanto mais fresca a carne da vítima, melhor o sabor e o efeito, seja o que for que isso significasse.

O diálogo dos dois seguia sobre esse assunto, enquanto eu me recostava na parede, com uma das mãos segurando no coldre to revólver, pronto para entrar na sala e mandar aqueles dois demônios de volta pro inferno deles.

Mas ainda não era hora.

Enquanto a conversa seguia, o ajudante perguntava o porque de se tirar o estômago dos corpos antes de comê-los. Que absurdo! Eles falavam com uma naturalidade tão grande! A resposta do mestre foi a que pessoas como eles precisavam comer da carne humana pura, pois qualquer outro tipo de vida para eles era como um veneno. Apenas a carne humana dava a imortalidade que eles desejavam...

Ah, você está rindo né? É, faça como os outros, ache que é apenas um delírio de um velho... Vamos, me dê o meu jornal e me deixe em paz...

Certo, tudo bem... Aceito suas desculpas. Não sei porque isso soou engraçado para você. Deve ser porque não é a primeira vez que escuta histórias sobre imortalidade não é? Bem, não importa, deixe eu terminar de contar o que aconteceu, antes que eu esqueça...

A fita terminou, e logo eles começaram a se arrumar. Acho que eles iam embora. Rapidamente voltei para a minha sala e recostei de novo na cadeira, pois eu estava dormindo para eles. O ajudante acendeu a luz e disse que os dois já estavam indo. Me despedi de costas mesmo, não aguentaria olhar para a cara daqueles dois. Mas também não podia deixar os dois sairem impunes dali.

Vi o rabecão saindo e distanciando. Pouco depois sai também, mas não atrás deles. Eles não sumiriam, trabalhavam no Instituto Médico Legal, um lugar perfeito para conseguirem todos os corpos que precisam. Eu tinha uma idéia em mente, e apenas durante esse acesso de insanidade é que eu podia realizá-la e dar um jeito nesses dois necrófagos.

Esperei alguns dias. Preparei uma cena. Deu trabalho. Mas depois de muita tesoura e lamina de barbear, o que eu queria estava pronto.

Liguei pro IML, solicitei que alguem viesse aqui no meu distrito recolher um corpo de um indigente, achado sem roupa, espancado e desfigurado. Disse ter um pouco de urgência, pois a morte era recente e isso podia auxiliar na investigação. Não tive que esperar muito para ter o retorno dos dois necrófagos, que chegaram da mesma forma da outra vez. Luvas pretas, sacos plásticos, olhos fundos.

Depois de mostrar o lugar, disse que precisava voltar para a delegacia, pois tinha mais trabalho a fazer. Avisei a eles para tomarem cuidado, pois o lugar era totalmente deserto e poderia acontecer algo caso eles demorassem muito. O mestre disse que eles demorariam apenas o necessário.

Entrei no carro e me afastei, até sair da vista deles. Voltei no escuro, aproveitando a falta de iluminação local e a lua nova no céu. Lá estavam os dois, ajoelhados, em volta do corpo. O rabecão não iluminava direito os dois, até porque o lugar tinha bastante mato. Pude ver os intrumentos sendo manejados e as vísceras sendo lançadas em um saco ao lado.

Ouvi alguns murmúrios. Eles queriam andar rápido com aquilo, aproveitando que o corpo não era grande. Logo o mestre se abaixou e abriu sua boca. Uma bocarra, para ser sincero. Nada que eu tinha visto até o momento abria a boca daquela maneira. Era capaz de engolir a cabeça inteira de uma pessoa. E foi o que o mestre fez. Uma simples mordida. Engoliu por inteiro a cabeça.

Então um engasgo. O mestre leva as duas mãos ao pescoço. O ajudante se assusta e cai de costas. Um vapor começa a subir... Vejo o necrófago se decompor em uma carne verde e podre. O cheiro é muito forte. Nisso eu me aproximo mais rápido, para poder pegar o ajudante de surpresa. Mas não foi preciso. Ele estava caído, de costas. Ria e balbuciava descontroladamente: "-Mais de 300 anos... O mais velho que já havia conhecido... Morto tão facilmente... Como fomos enganados..."

Ele estava desnorteado, uma presa fácil. Mas ainda sim, apenas de uma maneira ele podia ser derrotado. Juntando toda a coragem e loucura que estavam em mim, eu avancei sobre o corpo do mestre, juntei um tanto daquele material podre e enfiei garganta a baixo do ajudante, que esbugalhou ainda mais seus olhos verdes. Logo ele também se desfez como seu mestre. Fumegando.

Sai correndo dali. Meio descontrolado, acionei a última parte do meu plano... E toda aquela parte do terreno ardeu em chamas. O que havia sobrado naquele local, inclusive o rabecão, queimava. Para mim, aquilo era a purificação de dois seres malditos, que agora iriam pagar pelos seus crimes.

Depois daquilo, fiquei um tempo de licença médica. Inventei um problema junto de um doutor amigo meu, e fui visitar uns parentes no interior. Fiquei lá durante alguns meses. O tempo bastante para poder tirar da minha memória aquelas cenas macabras que havia presenciado...

O final desta história você está vendo aqui, na sua frente. Depois de anos servindo e protegendo, me aposentei, minha familia me largou e aqui estou, como única testemunha de um evento que ninguém acredita.

Se eu tenho provas? Ah, menino... Como teria provas, se elas foram queimadas naquele dia infernal? Mas, se você duvida, cheque se existiram dois fúncionários do IML que desapareceram durante essa época. Veja também sobre um estranho roubo em um centro de pesquisas médicas, desses que testam remédios em animais...

Bem, ja falei de mais. Devolva meu jornal, sim? Eu quero acabar de ler essa matéria...

Eu já te disse como eu gosto desses macacos e gorilas?

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Que assim seja.

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